Cheira bem a coscuvilhice


Estava na aula, aquilo tinha mesmo acabado de começar e eu só ouvi “… Português”, é claro que o meu interesse disparou de imediato e perguntei à M. E. o que é que ela tinha dito. Que nada, mas eu cá não sou trouxa e insisti, pensando já no plano B, caso ela se negasse a contar-me, mas ela, desbocada, reproduziu logo o diálogo que culminara com aquela palavra que me disparara o interesse.
Atão foi assim - dizia a M.E. - a J.M. disse que cheirava a bolor e a A. A. disse que não lhe cheirava a nada e eu disse que me cheirava a Português, tipo no sentido de nós estarmos a ter Português.
Apeteceu-me mandá-la calar, quando introduziu aquele “tipo”, como quem vem explicar o jogo de palavras que acabara de fazer, mas, em vez disso, sorri-lhe, pensando no espanto da sua expressão, quando descobrir que há outros verbos declarativos para além do dizer, mas isso são águas que ainda moverão moinhos.
Depois disto, não podia deixar de reparar na expressão compungida da T. B., mas como sou muito perspicaz, percebi logo o que se passava, é que o seu A. T. estava a faltar, parece que foi para Sevilha e ela, não sei se por saudade ou inveja, estava com aquela triste figura. É claro que a referência ao estrangeiro fez logo a M.E. ter uma grande ideia e disse logo que o que estava certo era fazer uma visita de estudo à Isla Mágica. Eu perguntei o que é que a minha disciplina tinha a ver com um parque de diversões, já preparada para uma resposta que me obrigaria a pô-la na rua, mas não, a M.E. surpreendeu:
Atão pressora íamos todos, depois quando estivéssemos na Montanha Russa, só falávamos Português.
É claro que pus o meu melhor ar de espanto e aproveitei para partilhar a minha surpresa por em 20 anos de aulas nunca me ter ocorrido essa ideia, enquanto pensava que Português se poderá falar numa Montanha Russa, surgindo-me todo um leque recheado do mais fino calão.
Por esta altura, vi uns dentes de imaculada brancura, enquadrados num sorriso largo, a espreitar à porta da sala. Era a colega I.O., aquela que sorri tanto que até irrita e que me deixou logo os nervos escangalhados. Sorri-lhe de volta, por educação e prossegui com notícias e reportagens e essas coisas de que se fala nas aulas de Português. Nisto passa a colega M.C. no corredor, atirando um “estou a ouvir a tua aula, estou a gostar”. Ela deve ter ido espalhar isso, porque não tardou nada, foi a colega R.B. quem apareceu. Esta é outra que sorri que se desunha e que me enerva até mais não, que eu cá gosto muito dos semblantes carregados, pela competência que se lhes cola à pele. É por isso que é muito raro alguém ouvir-me a voz e desconfio que ninguém sabe que também sorrio.
Eu bem que tentava dar a aula (que o sr. Ministro tenha lido esta frase), o problema é que me começaram a aparecer aos pares: eu divagava com a eloquência costumeira, eu movimentava-me com a elegância de todos conhecida, eu gesticulava e os meus gestos, não é para me gabar, mas roçavam a delicadeza de uma pluma que esvoaça com a brisa estival de um entardecer, eu fazia isso tudo e os moços, em vez observar-me com pasmo estampado no rosto, tinham o rosto  virado para a porta e sorriam muito. É claro que quis saber que coisa mos tirava assim. Era a colega I.O. e a colega R.B.. Tinham voltado e sorriam até mais não. Que queriam ouvir a minha aula. Que estava boa. Eu cá ia-me já a sair que lhe marcava uma faltazinha disciplinar que era uma graça, mas apercebi-me a tempo de que não podia, por isso fechei-lhes a porta na cara, com a finura que todos me reconhecem.
Lá consegui prosseguir, ainda a tempo de fazer uma pergunta a uma jovem. Não me recordo da pergunta, nem da jovem inquirida, só da resposta da M. C., que disse assim:
Pressora , já a enterrou.
Nisto ouviu-se o toque de saída, que sepultou na eternidade mais um  momento memorável desta arte de ensinar.
Mesmo à entrada do fim-de-semana e à saída da escola encontrei a D.ª F. que me perguntou se ainda estava chateada com ela. Eu até vinha esquecida de que estamos de “candeias às avessas”, mas aquele comentário fez-me reagir assim:
- Olhe, parece que ainda sinto uma magoazinha.
E segui o meu caminho rumo ao sol que se punha e ao feriado que desponta.
E assim vão os dias.

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