Destilaria de coiratos e outras histórias



O dia foi preenchido. Começo a notar alguma soltura nos pequenos, que não são os únicos a querer aparecer nas crónicas. É que também os colegas andam a fazer graçolas para ganhar o seu minuto de fama. A começar pela I. S., que trouxe um bolo típico de Portalegre, que era muito bom. Fala-se em comida e tudo em mim se inquieta. Comecei logo a elogiar a colega e a seu altruísmo, manifestado naquela partilha desinteressada de tão rico manjar. Lá pegou numa faquinha e vá de partir o bolinho. “Só um quadradinho pequenino”, disse eu, que de garganeira não tenho nada. E ela insistia em cortar um maior, e eu a insitir no mais pequeno. Assim que dou a primeira trinca e começo a mastigar, fez questão de me informar que o bolo era de Sábado. Ora hoje é Segunda-feira. Mentalmente cuspi-o todo e, enquanto a custo deglutia o pedaço que inserira na cavidade bocal, estendia a mão e oferecia o que restava ao colega P.C., que é outro que anda sempre a ver se petisca a coisa alheia. Falo de comida, naturalmente.
No intervalo seguinte, foi a colega S.R., que diz que vai criar a “Destilaria do coirato”. Pelo que percebi até já tem o espaço e tudo só falta a clientela anafadinha. Eu até gostava de a ajudar nesta ideia empreendedora, mas a elegância que enforma este corpinho não o permite.
Quando cheguei à aula, doiam-me os maxilares, não sei se das risadas se do bolo da colega I.S.
Ao entrar perguntei logo ao T. D. por que tinha faltado. A resposta não se fez esperar:
- Médico, perna, tendão, ruptura.
Como fiquei esclarecida, decidi passar à verificação do TPC., isto já na turma da B. K. , que disse que não o tinha feito porque tinha ido para Aljezur fazer surf, o que considerei uma razão de peso e prossegui, olhando como quem pergunta, para o Q. S., que me disse, num português escorreito:
- Tá ligado, mim sempre faz!
Eu fiquei muito satisfeita com ambas as coisas: o ter feito, mas sobretudo com a correcção do seu português, que não ficou por aqui, porque o jovem decidiu rematar a conversa com:
- Beleza, professora.
Retirando ali a vírgula e pondo a beleza a seguir a mim, fica “Professora beleza”. Foi isso que ouvi e que justifica o sorriso largo que lhe dei.
Depois de verificar e registar no Inovar os incumpridores, tarefa que desempenhei com todo o profissionalismo, vá de começar com o texto de opinião. Vá de dar um textozinho aos moços, vá de o ler com toda a expressividade. Depois deste, vá mais um que contradizia o primeiro. Ora o P. C. começou a sentir-se perdido e quis saber, afinal, qual era a opinião da autora, já que num defendia aquilo que criticava no outro. Para se esclarecer, dirigiu-se-me assim:
- Tão, mas oh pressora, o que é que a senhorinha da coisa da cena pensa? – isto acompanhado de uma expressão de genuína curiosidade.
Ora a “senhorinha da coisa” responde pelo nome de Antónia Mancha, a autora dos textos, ao que o Q. S., indignadíssimo, disse:
- Shiii, deu 30 anos mais p’ra professora!
Eu não respondi, porque o Q.S. reconheceu o quão injusto tinha sido o P.C.
Lá prossegui e, não sei a que propósito, dei graças a Deus por algo que eu própria fizera. Quem não se deixou enganar foi, novamente, o P. C., que corrigiu:
- Graças a Deus, não, à professora.
Ao que eu humildemente respondi:
- É quase a mesma coisa.
Senti o pasmo no silêncio dos petizes, que só foi interrompido por um cochichar lá para as bandas das últimas mesas: “oh, é a pressora que é Deus”. É assim que se criam os boatos, pensei, mas não o desfiz, é que isto da divindade assenta-me que nem uma luva.
Depois deste momento com alguma religiosidade, a M. E. decidiu dizer-me que lhe doía muito o ouvido, estive para lhe perguntar se queria que me calasse, mas como temi a resposta quem se calou fui eu e lá prosseguimos, ou melhor, eu tinha a intenção de prosseguir, os moços é que não estavam pelos ajustes, razão pela qual pus em marcha a estratégia altamente pedagógica da contagem decrescente, que é como quem diz, quando chegar a 1, pedagogicamente o aluno é estrategicamente colocado no exterior, sem que se lhe pergunte  “quereis ir para o exterior”, como fazia o saudoso colega L.P.
- Moços, vou entrar em contagem decrescente! – disse eu decidida.
- Então, pressora, vai à lua? – perguntou a M.F.  com um sorriso rasgado, mas de olhar no chão, o que a salvou de ir ver como estava o tempo fora do espaço da sala de aula.
Depois disto, e do respeito que impõe uma contagem decrescente bem feita, vá de escrever uns apontamentozinhos. Páginas depois, deu-se o seguinte diálogo:
- Há mais alguma coisa pa passar? – questionou o A.T.
- Posso avançar? – perguntei eu.
- Isso responde à tua pergunta? – perguntou a M.F. ao A.T.
Gostei da perspicácia.
Findo o período do apontamentozinho, foi momento de escrever. Que se juntassem em pares (de quatro,perguntaria a M.E. se estivesse na sala) que escrevessem um texto de opinião, instruções dadas, havia que clarificar como funcionava o escritório imaginário: a minha mesa é o escritório, onde cada grupo tem o direito de ir 3 vezes para solicitar apoio. O espaço é envidraçado e a porta é automática, mas o sensor é lento, pelo que, antes de entrarem, devem aguardar um pouco pela abertura das portas.
- Fui clara? – perguntei.
- Sim Dr.ª! – respondeu a M.F. 
Eu cá, como boa portuguesa, gostei logo do Dr.ª e por isso nem liguei ao seu sorriso descarado, enquanto procurava uma folha para começar a escrever. 
E assim vão os dias.

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