Uma aventura nas escadas



Na primeira aula de hoje estive mesmo para me aborrecer, mas pensei nos vinte e tal anos que me faltam para a reforma e decidi relevar a pergunta do T.S.:
- Atão vamos lá a ver, por que é que a pressora faltou?
- Porque caí . E, sim, estou a coxear, mas não me dói nadinha – disse logo eu, antes que começassem com as conversas do “devia ter ficado em casa. Devia cuidar mais de si”.
Noventa minutos depois, sequiosa, comprei uma água e desci. Pelas escadas. Saltitando, para não apoiar muito a perna que me dói, mas eis que sinto um fraquejar de músculo na outra e o tombar molemente deste corpinho que me enforma. O cóccix ainda roçou o degrau.
- Atão, Antónia? – era a colega I.O., que, sorrateiramente, vinha atrás de mim e que, em vez de me segurar, optou pela pergunta que se acaba de transcrever.
Ainda estive para lhe responder, mas em vez disso certifiquei-me de que o cabelo estava bem, e levantei-me, ou melhor, tive essa intenção, pois eis que senti novamente o fraquejar da perna sã. O corpo em desequilíbrio poderia ter rebolado escadas abaixo, pernas para um lado, braços para o outro, fracturas expostas, olhos esbugalhados ante a iminência do fim, padre chamado à pressa para a extrema unção, mas não, nada disso aconteceu. Inadvertidamente, deixei-me cair sobre os degraus, onde me quedei muda e sentada. Assim, em grande, com toda a gente a ver. Em baixo estava a colega D.G., que visivelmente preocupada me disse assim:
- Atão, mulher?
Tratei logo de tranquilizá-la, dizendo que estava tudo bem, ao que me respondeu que deixara a argila, a tal caríssima que faz milagres, com a D.ª S..
Saíamos as três, e porque a justiça pode tardar, mas sempre chega, a colega I.O. entrou num desequilíbrio desprovido de qualquer elegância e quase morria ali, à nossa frente, sem padre para o derradeiro sacramento.
Eu disse logo:
- Atão, I.?
E a colega D.G., sempre a zelar pelo bem estar dos seus professores, acrescentou:
- Eh pá, vocês não me arranjem problemas! Esbardalhem-se fora do portão da escola! – isto dito de bracinhos no ar.
Comoveu-me, confesso, e é neste estado de emoção que nos deixa a sós. A colega I.O. entre um ou dois dedos de conversa, decidida, pegou na minha garrafa de água, bebericou e colocou-a junto dos seus pertences. Tudo isto sob o meu olhar atento. Prosseguiu a conversa e eu, serenamente, mas já muito capaz de lhe atirar à cara duas ou três palavras mais rudes, puxei a garrafa para junto de mim. Notei-lhe um olhar que dançava entre o pasmo, a confusão e a raiva. Na sua expressãozinha, lia-lhe o pensamento: “Esta gaja vai roubar-me a água?”, ao que a minha mente respondia “Só estou a reaver o que é meu”. Foi nesta guerra mental que terminou a conversa. Entrámos. Ela sempre de olho na minha garrafa, eu sempre de olho no olhar dela, num verdadeiro duelo de silêncio. Separámo-nos. Ela foi à sua vida e eu à reprografia buscar a argila dos milagres. A D.ª S., assim que soube para que era, e que era coisa caríssima, começou logo com uma dor numa das mãos. Que até tinha um caroço, dizia. Não é que seja má pessoa, que não é, e eu preciso que me tire as fotocópias, mas às vezes é bocadinho dramática.
O dia findava, entrei na sala de professores e disse, com toda a bondade e nada de ironia:
- Vou para casa, colegas. Que se divirtam muito.
E vim, com a argila da D.G. , à espera de um milagre. Ainda caminho a arrastar as perninhas. Sim, coxeio das duas: uma por causa da queda de ontem. A outra, porque me tenho de apoiar mais nela. E o cóccix também não está nada bem. Só espero que não me apareça um carocinho na mão. Porque aleijadinha das pernas ainda aguento. Agora com uma dor lancinante no membro superior é impossível. Que o diga a D.ª S., coitada.
E assim vão os dias.

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