A minha carreira musical

 


E depois dizem que eu invento as crónicas… não, não invento, a questão é que me acontecem coisas que, parece, não acontecem a mais ninguém…
Terminara o intervalo, mas na coluna da luta, ainda se ouviam os Deolinda, com “Movimento Perpétuo Associativo”. Eu encaminhava-me para a entrada, perdida em pensamentos quando a B., uma jovem a quem ia dar aula, estalou os dedos e me pediu que fosse ao seu encontro.
Eu cá, como gosto muito que me estalem os dedos, perguntei-lhe logo se aquilo eram modos e ela sorriu e eu fui ao encontro dela. Foi então que me aventou a pergunta, que acabou por se alongar no diálogo que, a seguir, se reproduz:
- É a professora que está a cantar, não é?
- Sim, sou, mas porquê? – respondi, com naturalidade.
- Ah, o T. tinha razão. Já há montes de tempo que nos diz isso, mas a gente quis ter a certeza. Há partes que se vê mesmo que é a voz da professora.
Eu fui à minha vida (achava eu), enquanto nas minhas costas a B. comentava com os colegas que era mesmo a professora a cantar.
Não sei como, mas ali mesmo no corredor da Biblioteca, já a B. estava ao meu lado. Eu percebi logo. Passei a estrela e, como tal, não resistiu ao meu magnetismo e quis estar ao lado deste talento recém-descoberto.
- Vou acompanhar a professora até à sala! – disse-me risonha.
Eu, cuja única coisa que me irrita na vida é a presença dos alunos, delicadamente, tive de lhe dizer:
- Ai não vais, não!
- Ai vou, vou! – ripostou.
- Ai não vais não, que eu vou de elevador! – atirei.
- Ai vou, vou, que tenho aqui um problema num joelho! – desarmou – e vá de arrastar a perninha, saudável até àquele momento. Mas a arrastar de uma maneira que até dava dó.
Lá fomos até ao elevador. Enquanto esperávamos, achei por bem mostrar interesse pela mazela da petiz. É certo que não gosto de alunos, mas também não sou insensível às mazelas que apresentam.
- Olha B., magoaste-te hoje, foi?
- Sim, professora, na aula de E.F. agora mesmo. Só que parece que estou a arrefecer e dói-me muito aqui – e apontava para a parte anterior do joelho.
- Mas foi alguma queda? – quis saber, interessada.
Felizmente, o elevador chegou e com ele uma colega para subir connosco, porque eu estava a pontos de acreditar na B., tal o seu poder disfarce.
Quando entrei na sala, disse logo à turma que tivesse cuidado com a B, porque ela é uma fingida. Que sim, que não era novidade, que já todos sabiam. No enquanto, satisfeita, a B. sorria.
Quis começar a aula, mas ainda faltava a perguntinha da E.:
- É a professora que canta aquela música, não é?
Eu fiz um ar simultaneamente tímido e contrariado, como quem está habituada a ser reconhecida na rua e confirmei que era eu.
- Cante um bocadinho para nós – pedia com um esgar de ternura e uma piscadela de olho.
Enervei-me logo:
- E., vocês têm de entender que aqui eu sou vossa professora. A música fica fora da escola. E, muito a sério, não gosto de falar nisto, sejam discretos, por favor.
A jovem assentiu, com um ar de grande compreensão.
Finalmente dei início à aula, que terminou 90 minutos depois, deixando-me pela frente um fim-de-semana inteiro para me dedicar àquela que é a minha verdadeira vocação.
Animo festas, casamentos e baptizados e assino esta crónica com o meu nome artístico: Ana Bacalhau.

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