Quem anda à chuva...

 

- C., empresta-me o teu guarda-chuva, tenho o carro longe, vá lá! - pedia eu com olhos entornados, a ver a convencia, que a C. é muito ciosa de tudo, especialmente do seu guarda-chuva, que não se cansa de gabar. Não porque seja bonito, como ela própria assume, mas porque foi caríssimo, como faz questão de frisar inúmeras vezes.
Os astros devem estar para aí com algum alinhamento favorável, senão ouça-se o que me disse:
- Olha, ficas com a chave do meu carro, tiras o guarda-chuva, vais à minha sala, estou no piso 2 e devolves-me a chave.
Comovida com o gesto, aceitei, não sem antes lhe agradecer muito tamanha generosidade.
E fui.
Ao voltar, encontro a M. às portas do elevador, fazemos a viagem e em algum momento, decerto ciente do valor que eu transportava, comentou:
- Eu também precisava de um guarda-chuva.
Notei-lhe um pequeno tom de súplica, e, claro, estive quase para lho dar, mas acima do coração de manteiga, ergueram-se os meus princípios e não ia agora emprestar-lhe o que me haviam emprestado.
Já em modo de aceleração para procurar a C., ouço-lhe a voz estridente:
- Atão, onde é que vais?
- Olha, estás aí, está aqui a chave! - e arranca-ma intempestivamente das mãos, enquanto também, sub repticiamente, se apodera do guarda-chuva que anteriormente me havia emprestado para que eu pudesse ir para casa.
Importa esclarecer que toda a cena está a ser presenciada pela M., que, silenciosa e astutamente, no modo discrição que lhe é habitual, se vai manifestando através de um olhar de desgraçadinha que não tem guarda-chuva. Ora eu, que sou rija, mas de coração de gosma, não resisti e disse à C. :
-A M. precisa de um guarda-chuva.
Com a maldade encapotada pela simpatia que se lhe conhece, diz-lhe:
- M., toma, depois, quando já não precisares, vem trazer-mo aqui à sala.
Que sim, dizia a outra. E eu, vendo estabelecida a justiça e a concórdia, desço, já esquecida de que estava a chover. Ao chegar à saída é que me apercebo que vou apanhar uma molha e que, afinal, tudo não passara de uma armadilha:
A M. queria um guarda-chuva emprestado (a única condição era ser caríssimo), fala com a C., que não querendo ir buscá-lo, me convence a fazê-lo, fazendo-me acreditar que se preocupava comigo. Combina com a M. para que esta esteja junto ao elevador, para que pareça tudo normal, e depois a machadada final. O choradinho "casual" da M., a simpatia da C. e eu a correr para o carro com um cachecol pela cabeça.
Há lá coisa melhor que ter gente assim nos nossos dias?
Não lhes desejo mal. Mas é possível que amanhã sintam o peso do guarda-chuva "pela espinha abaixo".
Afinal, "quem anda à chuva, molha-se".

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