A cidade, ainda preguiçosa, escondia-se da iminência da chuva. Ruas desertas, esplanadas vazias, lojas à espera dos primeiros clientes. Enquanto isso, o esquadrão da luta enviara o Mercedes de combate para o centro, armadilhado de dois lápis pontiagudos, faixas carregadas de palavras de ordem e mais umas cornetas e uns apitos. A pé, seguiam três soldados animosos, cujos passos estremeciam a escorregadia calçada portuguesa da Infante de Sagres. Resolutos, destemidos, vigorosos.
A meio caminho, já ouviam as vozes de luta de outros que, junto a El-Rei barafustavam as injustiças que os esmagavam. Chegámos e montámos o arraial. Vá de decorar a estátua, vá de abrir as faixas, vá de cantar. E que bem que se cantou! Sobretudo porque eu estava afónica, facto que não me intimidou a pegar no microfone. Cantiga vai, cantiga vem, quando dou conta, estava a câmara da TVI apontada a mim e às outras duas guerrilheiras, a L. e a C. No momento chuviscava, por isso estávamos as três de capuz na cabeça e eu, não contente, ainda tinha os óculos de sol. No momento, tudo pareceu normal. Está claro que depois o primeiro pensamento foi o de esquecer a pouco digna figura que fizeramos.
O dia foi passado a lutar. Convictamente, que não andamos aqui a brincar com coisas sérias. Ora o que acontece, perguntar-se-ão. Acontece que hoje, ao entrar no cafezito onde costumamos ir, o jovem que nos atendeu, ainda antes do simpático "olá" com que nos brinda, aventou: "Vi as meninas na televisão". Foi o primeiro momento "terra traga-me" do almoço. O segundo deu-se quando, já sentadas, passa a senhora que nos serve o café, que saíra para algum recado e nos sorriu muito dizendo "Ai, ontem vi-vos na TV". Nós voltámos a rir, está claro, mas com mais preocupação. Finalmente, ao servir-nos o almoço, veio outra das senhoras que ali trabalha, que, pasme - se, afirmou, sorridente : "Ontem vimo-las na TV. Eu até disse, olha, são as senhoras das bifanas!"
Almoçámos com a preocupação estampada no rosto: que pensamentos terão estas pessoas em relação a nós, depois do que viram? Mas passou-nos e eu tomei mais uma Strephen para recuperar a voz, que, pelo andar da carruagem, ainda tem muita cantoria para fazer. A luta pode não acabar connosco, mas lá que nos deixa a dignidade estatelada nas ruas da amargura, isso deixa.
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