Tomates, gaguez e cacifos

 


Ele há  coisas que  parece que só me acontecem a mim. Então não é que na segunda-feira passada, tive este diálogo com a minha A? Ora escutem:

- Professora, posso ir ali? – apontando para o corredor.

- Mas, A., acabaste de entrar, constatei eu, sempre atenta a todos os movimentos dos alunos, porque, afinal, nunca se sabe… e efetivamente a jovem ainda nem sequer se tinha sentado e já pedia para ir “ali”, que é como quem diz, sair da sala.

- Deixei cair um tomate! – esclareceu.

Nada esclarecida, aquilo soou-me, vá, estranho, e pensei não ter ouvido bem, pelo que perguntei:

- O quê?

-Deixei cair um tomate! - e saiu apressadamente da sala.

Eu que não sou parva nenhuma, percebi de imediato que ela me estava a endrominar e encaminhei-me para a porta, ante o olhar estupefacto de toda a turma, que também não é parva e estava curiosa e contente por aquele acontecimento extraordinário.

Mistério desfeito, a A. deixara cair uma rodela de tomate da sandes que estivera a ingerir. Entrou, ignorando o que acabara de fazer, mas na curta distância entre o local do delito e o seu lugar na sala de aula dever-lhe-á ter pesado a consciência e decidiu voltar atrás e limpar a prova que a poderia incriminar sabe-se lá do quê, e, perspicaz, percebeu que tinha de aventar algo, cuja gravidade não lhe negasse a saída e é aí que surge a perda do tomate. Percebeu a intriga que causaria: “a A. tinha tomates?”, “Onde?” “Por que razão andava ela com tomates?” “Tratar-se-ia de alguma metáfora?” e percebeu que, ante um pedido daqueles ninguém lhe negaria a saída da sala.

Eu até já me estou a imaginar a dizer isto quando alguma reuniãozinha me estiver a aborrecer:

-Colegas, tenho de sair, deixei cair um tomate!

Depois do mistério resolvido e de ter todos os alunos sentados, coisa que tarda, pois são jovens com muitos afazeres extracurriculares, lá dou início à aula, informando que o “Sermão” ficaria concluído, ou não me chamasse eu Mancha, Antónia Mancha. Vá de ler, vá de sublinhados e apontamentos, vá de muito estudo, vá de controlar o relógio para me certificar de que iria sair tudo perfeitinho, conforme planeado, vá que toca a campainha! Foi assim um murro na minha competência pedagógica, e não me contive: levantando os braços ao céu, faço a  dança  da revolta, enquanto vocifero toda a frustração:

- Caramba, não consegui, não consegui terminar, como é que vou terminar o programa?!

Enquanto bailava a impotência, eis que ouço as vozes da salvação, oriundas de debaixo das mesas:

- Oh melher, sossegue que isto é um sismo!

- Que alívio, exclamei, enquanto tentava dobrar este atlético corpo e o fazia  caber sob o tampo da mesa mais próxima.

Tinha-me esquecido de que era o exercício “A Terra treme”. Sim, a Terra tremeu, mas avisaram-nos, não fosse alguém aleijar-se e, isso sim, seria quase tão grave como eu não cumprir o meu plano de aula.

No dia seguinte, já refeita, noutra turma e com o “Sermão” concluído e o Romantismo contextualizado, lá andava a fazer mistério com Frei Luís de Sousa”. A I., moça que tem por passatempo moer-me a cabeça, informou-me que, naquela aula, iria abandonar o seu lugar habitual e ficar sentada na última fila, no entanto, ante o meu olhar de satisfação, mudou de ideias e disse assim:

-  Não, afinal vou ficar no lugar de sempre, que é para a professora ter de me ouvir a aula inteira.

Eu sou uma pessoa para quem o desejo dos meus alunos são ordens, vai daí, também lhe prestei uma informação:

- Jovem I., preciso de uma Madalena e não vejo outra pessoa mais indicada para encarnar a personagem, além de que se matam “dois coelhos de uma cajadada”: a aluna incorpora o espírito da senhora Madalena de Vilhena e eu tenho de a “ouvir a aula toda”.

Que estava mal, que tinha uma pieira, mas  nada me demoveu e ela lá começou a leitura.

Ora, chegada à parte em que a personagem diz “… quando me casei a…a… a primeira vez” ia continuar a ler e eu, professoral, e ciente da importância daquela hesitação da fala da personagem, perguntei logo aos moços:

- Então vão deixar a I. avançar com a leitura e não reparam nesta parte da fala de Madalena?

Ficaram todos calados, mas a I. constatou o óbvio:

- Atão, Madalena é gaga!

Com certeza, I., com toda a certeza!

Para terminar, hoje, quarta-feira, foi dia de reunião de Grupo.

Toda a gente séria. Às vezes até penso que o profissionalismo se mede pela carga sorumbática que cada um carrega. Ora a colega E. não conseguiu esconder o seu desagrado pelo facto de não ter cacifo. Ainda mais quando os há vazios, mas fechados, dado que os inquilinos do ano anterior se foram e com eles levaram as chaves, das quais não existe qualquer cópia. A  colega que manda em todos nós, que é como quem diz, a Coordenadora, informou que a única solução era arrombar a fechadura. Ao meu lado o colega J. rejubilou, mas de forma séria, e não sei se por hábito em arrombar fechaduras, se por ter a oportunidade de se iniciar nessa carreira. No entanto, tudo ficou em “águas de bacalhau”, pois a Coordenadora, seriamente, esclareceu que não pode ser qualquer um a fazê-lo, tem de haver um técnico e mais não sei o quê.

Eu, que gosto de apresentar soluções, apresentei-a e sugeri, de semblante carregado:

- Não sei se é possível fazê-lo, mas tenho uma sugestão: aproxima-se a Black Friday, seguramente que haverá promoções muitos jeitosas em cacifos. Cada um compra o seu e colocamo-lo na sala de professores. Quando acabar o ano letivo, é só agarrar nele e levá-lo e já está.

Ficaram todos de pensar, isso me garantiram as suas expressões divertidamente sérias, que isto é gente de um profissionalismo imaculado.

Assim foram os dias. E só estamos a meio da semana.

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