Crónica do dia de ontem, a pedido.



Dar aulas é também saber estar. E se pedagogicamente sou de uma competência que não cabe nestas linhas, também a minha presença é notada. Ontem, como todos os dias desde há vinte  anos, aperaltei-me para ir dar as minhas aulas. Mal sabia eu que estava na mira da Providência, que justamente à hora de sair de casa e sem qualquer aviso prévio, decidiu enviar à terra o segundo dilúvio.  
Preocupada com o aprumo do penteado, embrulhei a cabeça no cachecol, peguei no trolley, chave de casa, chave do carro e fiz-me à vida, sem saber que a morte me espreitava. Ali, mesmo ao virar da calçada.
Surdo às minhas preces, inclemente, o céu cuspia-me com desprezo, enquanto eu encetava uma elegante corrida até ao porto de abrigo. Não o alcancei. Num enleio de pés, pernas e mala, airosamente, estatelei-me no chão, enquanto grossas bagas de chuva me escorriam pelo rosto, deslizando até à boca, que elegantemente vociverava os mais finos impropérios. Levei a mão à cabeça. O penteado não resistira! “Morro aqui”, pensei, sozinha, nesta calçada, toda despenteada. E deixei que uma lágrima se juntasse à chuva que me molhava o rosto. O corpo todo.
Levantei-me, e, a arrastar a perna, voltei para casa. Precisava pentear-me. Liguei para a D.G. e disse-lhe que ia faltar à primeira aula, que enquanto não parasse de chover sentia não estarem reunidas as condições necessárias para desempenhar dignamente o meu trabalho. Ela disse que estava bem. Ela é muito compreensiva. Até me disse que tinha uma argila muito boa, caríssima, que fazia milagres a quem arrasta a perna e que ma ia levar, que ia ver que ficava boa num instante.
Terminado o dilúvio e já penteada, lá fui, puxando pela perna, para as aulas que faltavam e à passagem pelo corredor, vá de ouvir a previsível interrogação retórica:
- Atão a pressora faltou?
- Não. – respondia. Secamente.
- Atão a pressora ‘tá a coxear?
- Não, estou só a fingir. – retorquia, ante o olhar confuso dos petizes.
- Atão mas o que é que aconteceu?
- Caí. E já está. – e lá continuava, desempenada, a puxar pela perna.
Lá consegui dar as aulas. Numa delas, fiquei a conhecer melhor a T.B., que ante um exercício, confidenciou em alta voz e sorriso seguro:
- Oh pressora, é que eu sou mesmo burra, burra. Eu tenho cérebro, , mas parece que não gosto de o usar. Não gosto de pensar. Vou casar-me com um homem rico e pronto. Mas se não conseguir, arranjo um emprego.
A isto chamo eu uma lição de empreendedorismo.
E assim, a arrastar a perna, vivo os dias.


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