Conversa amena com os rapazes
No sumário, pus assim: «Conversa amena com os rapazes.
Sebastião da Gama, Diário
«Conversa
amena com os rapazes.», foi este o sumário da minha aula de ontem com o 10º
ano.
Sonhamos para
continuar a sonhar. O problema é quando o sonho se transforma numa coisa real.
Não que não tenhamos outros, mas porque, quando um deles deixa de o ser, há um moroso
caminho a percorrer. E com muitas pedras. Perdoem-me a metáfora tão pobre. Só
faltava dizer que a tinha roubado a Pessoa, e embora muitos o creiam, não, é só
ironiazinha por me terem vindo à cabeça essas linhas tão pobres, tão despidas
de poesia e que, no entanto, tanto agradam até aos que se de dizem amantes das
letras, vendo nelas o Poeta. Pobre Pessoa, e pobre de mim, porque não o
encontrar ali “é não ter calma” e às vezes a inquietação cansa-me a vida.
Para que se
entenda, há que sentir o meu sentir. Muito pequena ainda, a carrinha vermelha
da itinerante biblioteca Gulbenkian preenchia-me vazios. É quase parvo dizer
isto, quando me refiro a mim, com 8 ou 9 anos. Não há vazios com essa idade,
dir-me-ão. Enganam-se, asseguro-vos. Eu, cuja memória mais remota relativamente
a estes temas de vazios e dúvidas remonta aos meus 5 ou 6 anos, altura em que
percebi que somos “seres para a morte”, encontrava, quinzenalmente, às 3ª
feiras, os livros para me (des)encontrar
e ter vazios. Abençoada maldição!
Apareceram aí
para nunca mais me deixarem. Mas foi (é!) penoso o caminho, talvez por isso
tenha sabores que não esqueço, como o do arroz doce do amor da minha mãe ou o
dos pedaços de pão, com finíssimas rodelas de chouriço, cortadas pelo coração do
meu pai. São companhia, os vazios, num caminho tão solitário. E porque o é, ao
longo da jornada, procurei identificação. A custo, é certo, porque sempre a
tentei encontrar no lado errado da vida, porque, ainda hoje, os quero negar, pois
fazê-lo é ser aceite. E ser aceite, embora não preenchendo, é agradável. A primeira
identificação veio tardia. Estava na Universidade. E era da minha idade. Apesar
de sentir o que é partilhar solidões, não tinha autoridade. Essa só chegou no penúltimo
ano do pomposo curso de “Línguas e Literaturas Modernas” pela mão de um mestre,
a quem não posso agradecer, porque, e citando-o, no seu livro Fugidia Comunhão,
“Aos mestres não se agradece”. Chegou naquelas aulas de Didática da Literatura,
nas quais se discutia o tudo e o nada, mas donde saía com uma plenitude
inquieta. Chegou e tinha uma voz serena, mas um olhar intranquilo, que, no entanto,
ao mesmo tempo, era porto. E era abrigo.
O mestre tem nome. É António Branco. E chegou para me dar a movediça segurança
que só os mestres sabem dar. Não foi por ele que me fiz professora, mas foi ele
quem, talvez sem que o saiba, fez a professora que sou. Tão longe do que queria
ser, é certo, mas até essa insatisfação lhe devo.
Depois foi
sempre assim, hoje é assim, entre tormentas e calmarias. Mas ora que me
aconteceu cumprir (mais) um sonho: uma turma de 10º ano. Mas ora que estava confortavelmente
agrilhoada a uma serena normalidade, acreditando, arrogante, que segurava o
pulsar da vida. Por isso, o que afirmava ser um sonho cumprido, mais não era que
uma casa, à qual só se reconstruira a fachada. Frágil fachada. Como todas.
Tinha alunos e literatura. Tinha
toda a parafernália tecnológica ao meu dispor, o marcador indispensável, o powerpoint
estética e cientificamente irrepreensível, mas no fim de cada aula, sentia o
alívio por ter terminado. Era menos uma, numa espécie de check list. Arrumava
os livros, o comando, o marcador e a solidão. Saía da sala. Sabia, sim, o que
faltava. E não, alunos, não eram expectativas defraudadas em relação aos vossos
conhecimentos ou à falta deles, como ontem me diziam. Não era a vossa apatia ou
desinteresse. Não era isso. Éramos nós. Eu, tímido pastor, que insistia em
aceitar que o nada era o tudo que iria receber, até porque o contrário implicaria
enfrentar o medo de mandar às urtigas todas as regrazinhas que me impõem. E eram
vocês que, instalados num fantasmagórico sistema “tão educado” que vos ignora, seguiam
o vosso trilho, em busca da melhor nota, sem que nada meu vos tocasse. Sem que
me deixasse tocar por vocês. Uma paz putrefacta empestava-me as palavras e a
medida dos gestos e vozes gritavam-me no peito: “Essa roupa não é tua, Antónia,
não vistas o que não és!”. Porque a vida acontece nos sinuosos abismos que
ladeiam os passadiços por onde querem que caminhemos, decidi desafiá-los. E foi
assim, com a alma nas mãos, que me apresentei. Para lhes falar de muitas coisas
e de coisa nenhuma, para os pôr a pensar sobre versos e poemas. Para ouvir uma
espécie de grito admirado – desconfiado – incrédulo: “isso foi a prof. que
escreveu?” e para lhes atirar com a escrita ao coração.
Vi olhares de
medo, de desconforto, de segurança, de entusiasmo, de descrença, de condescendência,
de preocupação. Vi tantas coisas. Faltou uma: a indiferença.
E já comecei a receber textos. E
a ler textos. E a procurar encontrar uma forma direta, mas delicada, de dizer
que, esteticamente, há que reformular, de dizer que está uma merda e não vale a
pena insistir naquela ideia daquela forma, de convencer de que está bom, muito
bom, mas que há ali uma metaforazita que precisa de uns retoques. Estou a
enamorar-me e a deixar que me enamorem. E porque nada na vida é mais importante
que o amor. Estou a viver o sonho que só agora se começa a cumprir.
«Conversa
amena com os rapazes.», foi este o sumário que, por incompetência, ainda não
escrevi, e que revela outra incompetência: a de perder 90 minutos a conversar com
os alunos e deixar acontecer uma aula de português.
«O que eu quero principalmente é
que vivam felizes.» — Não lhes disse talvez estas palavras, mas foi isto o que
eu quis dizer.” (*)
(*) Sebastião da Gama, Diário
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